O Jornalzinho

No pátio havia uma lousinha onde eram escritos avisos dizendo como seria ocupado o recreio após o almoço: trabalho ou recreação. Nessa mesma lousinha lembro que eu fixava uma folha de sulfite, uma espécie de jornalzinho, com textos e desenhos feitos por mim. O jornalzinho tinha um nome mas que não me recordo mais.
Estava ali um prenúncio do que eu viria a fazer mais tarde.

A Redação

Quando eu já tinha meus treze anos, o professor de Língua Portuguesa, clérigo Genésio Bonna, pediu que fizéssemos uma redação de tema livre. Não sei por que, mas na hora veio-me à mente a tromba d´água que havia acontecido em Americana nos meus acalentados sete anos. Na ocasião a cidade tinha pouco menos de 20 mil habitantes. Peguei o tinteiro, a caneta de pau e o mata-borrão (papel grosso e absorvente usado pra secar a tinta da escrita) e comecei a escrever. Fato curioso foi que enquanto eu escrevia tinha a sensação de que a tromba d´água estava acontecendo naquele instante. Vou puxar pela memória e tentar lembrar o que escrevi.
Foi mais ou menos isso:
Entreguei o caderno de redação para o professor. Eu estava curioso para saber que nota ele me daria, e mais que isso para saber se ele também teria a mesma sensação que eu: sentir a tromba d´água acontecendo naquele momento.
Quando o professor devolveu o caderno, fui direto à página da redação. Imagine minha alegria ao ver que o professor havia me dado nota dez. Sorri de satisfação. Naquele momento eu descobria meu talento que haveria de desenvolver, bem mais tarde, com a publicação de tantos livros.
Com a redação que eu fizera, sobre a tromba d´água, descobri que escrever é por pra fora o que está dentro de si; que escrever é compartilhar; que escrever é se entregar de corpo e alma naquilo que se escreve; que escrever é produzir sentimentos: alegrias, angústias, prazer; que escrever é: se manifestar, é se expor, é se doar, é mostrar a alma, é se entregar ao leitor; descobri enfim que escrever é uma espécie de terapia que faz bem à alma!
Era o dia 12 de novembro de 1949, dia em que Americana comemorava 25 anos de emancipação.

O dia estava quente, abafado. Um mormaço sufocante deixava as pessoas moles e sem ânimo pra fazer coisa alguma. Animais calorentos estirados ao chão pareciam não dar sinal de vida... No céu, aves aparentemente irrequietas e incomodadas se mudavam de um lugar para o outro como se prenunciassem algo muito ruim. Ninguém melhor que elas para prever mudanças no tempo.

De repente, uma ventarola que se iniciara começou a varrer as folhas secas do chão amenizando ao menos momentaneamente o torpor sufocante que se instalara...

Mais um pouco e aquela ventarola se transformou em rajadas de vento erguendo nuvens de poeira vermelha, arrastando e jogando pro alto objetos encontrados pelo chão, balançando e envergando árvores...

Subitamente, nuvens negras e amedrontadoras passaram se a se formar, a se juntar fazendo o sol desaparecer e deixando o dia parcialmente escuro.

De tanto em tanto, faíscas elétricas trocadas entre as pesadas nuvens e entre elas e o solo riscavam o céu iluminando por segundos a penumbra que se formara sobre a cidade. Trovões soavam como bombas, assuntando crianças e adultos... Mulheres fechavam rápido, as janelas e apressadas corriam atrás de recolher a roupa do varal postas a secar, antes que molhassem...

Pequenos pingos de chuva passaram a salpicar o chão quente levantando volutas de poeira molhada. Nessas alturas não se via alma viva fora de casa. Esperando pelo pior, muitos rezavam e queimavam, com um pouco de brasa, palma benta guardada do Domingo de Ramos, pedindo proteção. Minha mãe sempre fazia isso por ocasião de chuva forte acompanhada de relâmpagos e trovões, benzer a casa...

À medida que os pingos de chuva engrossavam amentavam os relâmpagos e o ribombar dos trovões soando cada vez mais fortes. Diante de tal cenário dantesco pessoas intensificavam suas rezas. Mas a natureza é implacável e com ela não temos muito a fazer. Não demorou, para que os grossos pingos se transformassem em chuva pesada. Menos mal, pensavam alguns imaginando que todo aquele alarde da natureza fora apenas para desencadear uma chuva. Mas não! Foi quando de repente aquelas grossas nuvens escuras começaram a se remoer, a se contorcer e despencaram todas de uma vez atingindo principalmente o centro da cidade. Era como se o céu houvesse desabado. Americana havia sido atingida de forma implacável por uma tromba d´água. O estrago estava feito. Pobre Americana! Que presente mais estranho bem no dia de sua emancipação. De dentro de suas casas os moradores aguardavam apreensivos. Mas como é sabido, depois da tempestade vem a bonança!

Quando tudo terminou e o céu voltou a clarear, assustadas as pessoas começaram a sair de suas casas para contabilizar o estrago: o pequeno córrego do Parque havia se transformado numa gigantesca correnteza encobrindo a piscina ali existente e suas avenidas laterais levando um monte de quinquilharias; o circo que havia se instalado na cidade e junto com ele pessoas, adultos e crianças, tinham sido arrastadas pela fúria das águas; a ponte sobre o córrego do Parque na Rua Fernando Camargo fora toda danificada; árvores haviam sido arrancadas; calçadas e asfalto destruídos deixando enormes crateras; ruas sobretudo do centro da cidade e a área de fronte à estação de trem estavam totalmente encobertas pela água...

Bem no dia em que completava 25 anos de emancipação, a minha querida cidade de Americana havia sido vítima de uma tragédia sem precedente. Que triste sina! Era o dia 12 de novembro de 1949. Eu tinha sete anos e me recordo como se fosse hoje.

Fim!