Minha Terceira Casa
Na terceira casa, uma casa nova e alugada na rua Riachuelo, vila Santa Catarina, de propriedade do senhor Niels Jensem, morei dos nove aos onze anos. Nosso vizinho era o senhor Bueno, pedreiro, que havia participado da Revolução Constitucionalista Paulista (1932). Pelo fato de beber, brigava muito com a mulher. Das três casas é a única que ainda existe.
Do tempo em que vivi nessa casa, recordo-me de ter tido algumas roupas, calça e camisa feitas com saco de farinha. A calça era tingida de azul marinho pra ser usada como uniforme da escola. O embornal, espécie de simples mochila escolar era feito com o mesmo pano. Lençol e toalha de banho eram feitas também com saco de farinha. Uma bolsa simples de coro completava o material. Era comum irmos descalços pra escola. Nesta época não tinha contato com livros e muito menos com a leitura. Desde cedo tive que me virar pra ter o meu dinheirinho para ir ao cinema aos domingos (matine) no Cine Glória (hoje teatro, aquele em que o palco desmoronou por duas vezes) e comprar doce de leite, meu preferido. Catei esterco de vaca em meio a um eucaliptal e pastos vizinhos de casa, para vender às donas que o usavam para adubarem seus jardins e hortas; além disso catava osso no pasto pra vender na fábrica de cola do Zanaga. Era eu que engraxava os sapatos dos meus irmãos maiores. Eles gostavam porque eu os deixava brilhando. Naquela época não se falava em trabalho infantil. Por sorte hoje ele é proibido e combatido apesar de ainda existir bastante.
Coisa boa era ouvir minha mãe dizendo que eu era um menino de ouro ou que valia ouro, talvez porque eu a ajudasse a lavar a louça.
Nas três casas o fogão era a lenha, geladeira não tinha e nem água encanada. A água tinha que ser tirada do poço com balde, inclusive eu puxava água. (Foi minha irmã Maria que mandou dinheiro para a construção do poço). Meu irmão Gino, mais forte, rachava a lenha usada no fogão a lenha. Em vez de comprar gás, comprávamos lenha do carroceiro. Gino também jogava como goleiro do Flamengo de Americana. O Rio Branco era o principal time da cidade e fazia parte do clube de mesmo nome. Verdura que faltava na horta do quintal era comprada do verdureiro, que trabalhava com uma carroça. Também não tinha banheiro dentro de casa, apenas a casinha que ficava fora. À noite quem precisava se aliviar servia-se do pinico.
O banho era numa bacia de flandres somente aos sábados (utensílios de plástico ainda eram raridade). O que se fazia todos os dias à noitinha era lavar os pés porque vivíamos descalços e eles ficam sujos de terra vermelha. Também não tinha televisão. Quando meu pai comprou um rádio de marca Semp, algumas vizinhas vinham à noitinha ouvir novela em casa, sentadas em cadeiras porque também não tinha sofá. Uma daquelas novelas tornou-se famosa: O direito de nascer. A música do noticiário O Repórter Esso, que o pai ouvia todas as noites, me dava medo porque me fazia lembrar notícias de guerra. O ferro de passar roupa era à brasa. Quando eu tinha muita vontade de comer doce ia até a lata de açúcar e pegava um torrão de açúcar. Aos domingos, além da tradicional macarronada italiana, às vezes com o macarrão feito em casa e um belo polpertone (bolo de carne moída) feito pela minha mãe; minha irmã Lourdes fazia um manjar branco enfeitado com ameixas pretas. Minha mãe, como boa italiana, fazia muita polenta. Nos dias de semana na janta era sempre sopa de feijão (minestra) com macarrão, para agradar meu pai, ou com arroz para agradar o Nando. Nesta terceira casa continuamos a fazer cirquinho em casa ou na casa de algum colega. Talvez estivesse aí uma preparação para a profissão do magistério que um dia eu haveria de seguir.
Além da horta no quintal dos fundos, cuidada pelo pai, criávamos galinhas que nos garantia carne e ovos. O pai também dizia que as frutas ficavam mais gostosas se amadurecidas no sol. Por isso, depois de fazer cortes no mamão pra sair o leite da casca, punha-o sobre o telhado do rancho de lavar roupa.