Minha Infância e as Casas onde Morei

Rua Carioba com seus famosos bambuais.
Mesmo pertencendo a uma família simples, posso dizer que tive uma infância feliz, até porque crianças são felizes com pouco.
Das três casas em que morei, da primeira na rua Carioba, uma casa geminada de propriedade da Dona Norina Rosalém e Eugênio Cia (foi no fordinho dele que pela primeira vez andei de carro) e que tinha como vizinho Dona Joana, seu marido (que bebia muito) e seus três filhos, não me lembro de nada, talvez por ter saído muito pequeno de lá. Foi nela que eu nasci, pelas mãos da parteira Dona Guiomar. Eu não me lembro, mas foi nesta casa que a mãe lavava roupa de joelhos numa poça de água corrente e coarava (deixar a roupa sob o sol sobre a grama para ela branquejar). Ela também lavava a roupa de uma família Sacilotto (Dona Carmela), vizinha que tinha padaria, para ganhar uns trocados e ajudar na renda da família. Quando a roupa estava sendo coarada, de tanto em tanto aspergia-se água com sabão sobre ela, sendo depois estendida no varal de arame sustentado por bambús.
Sei dessas coisas pela minha irmã Maria que nessa época tinha os seus 10 anos e sempre me contava coisas sobre a família. Ela foi a única da família que recebeu apelido: Maricoto, dado pelo pai. Pena que ela veio a falecer no final de 2019.
Da segunda me recordo bem. Ficava na rua Rui Barbosa, bem próxima ao centro da cidade. Foi nessa casa que descobri minha vocação para professor, pois, mesmo sem saber ler e escrever, usando carvão na falta de lápis e pedaços de papel que eu rabiscava, sentado num paralelepípedo no corredor da casa, brincava de ser professor.  Foi quando morei nessa casa que a gente comprava na venda, que eu levava marmita pro pai, descendo pela rua Fernando Camargo até a fábrica do Zanaga onde ele trabalhava como operário. Enquanto o pai comia, sentado num tronco sob a sombra de uma frondosa árvore, eu ia brincar de rolar sobre grandes fardos de algodão que formavam enormes montanhas no galpão da fábrica.

A venda

Na segunda casa em que morei, as compras de gêneros alimentícios e outros mais eram feitas na venda ou armazém. A venda, era como se fosse o mercadinho de hoje, com a diferença de que vendedor e mercadorias eram separados por um balcão. Ou seja, era o vendedor que pegava as mercadorias solicitadas. Supermercados não existiam e era na venda que meu pai e todas as pessoas faziam as despesas do mês. Às vezes eu ia sozinho fazer compra de alguma coisa que faltasse, levando uma sacola. Por sorte não existiam sacolinhas plásticas que tanto prejudicam o meio ambiente. Como disse, o rústico balcão de madeira que separava o vendedor e mercadorias do comprador parecia tão alto, ao menos para nós crianças, que a gente tinha que ficar na ponta dos pés para falar com o vendedor. O óleo ficava num tambor verde ou azul, não me lembro. A gente levava um litro vazio e o vendedor o enchia usando um funil. Os cereais, vendidos a granel, ficavam em sacas. Tanto o óleo quanto as sacas de cereais ficavam no chão na frente do balcão. Uma vez, ainda pequeno, fui comprar óleo e na volta pra casa o litro escorregou da minha mão e o estrago estava feito. Não me lembro do desfecho dessa história. Também, quem mandou o vendedor deixar vazar óleo ao encher o litro? Sobrou pro coitadinho do Nando. A maioria das pessoas comprava a prazo e suas despesas eram registradas numa caderneta que ficava sob o cuidado do vendedor. Uma vez por mês, quando o pai recebia o pagamento (salário) ele pagava a conta confiando integralmente na capacidade de soma do vendedor que sempre estava com um lápis apoiado na orelha. Não havia outra saída a não ser confiar nele. Nessa ocasião, como bom italiano, o pai tomava um copo de vinho e oferecia um gole pra minha irmã Lina ou Maria que o acompanhava.

Trabalhando

Foi também morando nessa casa que engraxei sapatos na Praça Comendador Müller, enrolava tecido no depósito em cima da garagem do palacete do senhor Geraldo Gobbo (hoje sede da funerária Bom Pastor), vizinha a nossa e proprietário dela, vendi sorvetes em caixa de isopor em frente ao Hospital São Francisco, recém-inaugurado, trabalhei em fábrica de gaiola (não tinha ainda a preocupação com o meio ambiente), carreguei sacas de palha de arroz para o circo para entrar sem pagar. A segunda casa em que morei foi demolida para dar lugar a um estacionamento.

Caçando Codornas

Geraldo Gobbo gostava de caçar codornas. Certa vez, me levou para catar codornas que ele matava com sua espingarda. Por sorte não acertou nenhum tiro em mim, mas fui vítima de um pequeno acidente: ao atravessar uma cerca de arame farpado, tive um corte profundo na perna logo acima do joelho que sangrou muito mas não contei nada a ele, procurando estancar o sangue sozinho. Tenho até hoje a cicatriz. Por sorte e com justa razão, hoje a caça é proibida e ai de quem for pego caçando ou matando passarinhos ou inclusive fazendo tráfego de aves ou qualquer outro animal… Parece que finalmente o homem está tomando consciência e respeitando mais a natureza.

As Figurinhas

Como toda criança, colecionei álbuns de figurinhas de futebol e de pássaros, sendo que as figurinhas vinham enroladas em balas, uma delícia. A grande sensação eram as figurinhas carimbadas. Elas davam direito a prêmios, que a gente trocava por alguma quinquilharia no bar onde elas eram vendidas. Do lado da nossa casa morava um alfaiate, Senhor Cocatti, que trabalhava assoviando o tempo todo. Era gostoso ouvi-lo assoviar. Por ocasião de chuva forte acompanhada de relâmpagos e trovões, minha mãe costumava benzer a casa queimando com brasa, palma benta guardada do Domingo de Ramos, a fim de pedir proteção. A benzedeira mais conhecida da cidade era a Dona Amabília. Era nela que a mãe levava a gente para ser benzido quando tinha algum problema. Quando eu ficava com tosse, a mãe fazia um xarope de flor de mamão que era uma delícia. Lembro-me também que minha mãe era procurada por pessoas com dor de cabeça pra serem por ela benzidas.
Ela fazia isso no quintal de casa, sob o sol, colocando um guardanapo de prato dobrado em triângulo sobre a cabeça da pessoa e sobre ele um copo com água com a boca virada pra baixo em cima do guardanapo. Mais tarde, aconselhada por um padre do colégio que eu frequentava, minha mãe deixou de benzer as pessoas. Ainda quando eu morava nesta casa e tinha apenas sete anos, uma tromba d´água atingiu o centro da cidade provocando a morte de seis pessoas e grandes estragos. Mais tarde, nos meus acalentados treze anos e já morando num colégio interno faria desse acontecimento tema de uma redação com a qual viria a descobrir meu talento como escritor. Outra coisa que colecionei foi maços de cigarro (vazios, é claro). Lembro-me também que o cigarro que o pai fumava era da marca Macedônia, o mais barato que havia e as vezes era eu que ia comprar.